A RESPONSABILIDADE CIVIL NA FALHA DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO MÉDICO POR DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE INFORMAR

O insucesso da vasectomia adotada em virtude de planejamento familiar

 

Deilon Flavius de Queiroz

 

1. Introdução. O estudo de caso.

A proposta do presente artigo é a de investigar, a partir de um caso concreto, a aplicação da responsabilidade civil ao prestador de serviço de saúde que, diante do atendimento médico-hospitalar fundamentado, especialmente, na Lei do Planejamento Familiar (Lei Federal 9.263/96), falta com o dever de informar. Segue o caso concreto.

Na segunda gravidez de Juliana(1), a partir de um caso concreto, que é mulher de Carlos, seu médico a advertiu de que ela havia sido acometida por varizes generalizadas, inclusive internas (intravaginais), e que uma terceira gravidez causar-lhe-ia sérios riscos de morte.

Já naquele momento, Carlos e Juliana estavam cientes de que a condição financeira não lhes permitia sustentar mais filhos, razão pela qual concluíram que Carlos faria uma cirurgia de vasectomia.

Carlos, servidor público estadual, procurou o serviço médico especializado oferecido pelo seu sistema próprio de previdência social. Ele e Juliana passaram pelo serviço social, tiveram suas vidas investigadas, quanto ao aspecto socioeconômico e psicológico (exatamente para que se pudesse admitir a cirurgia de vasectomia) e foram advertidos de que, uma vez realizado o procedimento, o resultado contraceptivo seria definitivo, impedindo definitivamente que Carlos tivesse filhos. Carlos assinou um documento para se expressar ciente de que “A Vasectomia consiste na secção e ligadura do duto deferente, e que eu, em consequência, ficarei definitivamente esterilizado, isto é, incapacitado para gerar filhos”.

Carlos se submeteu ao tratamento cirúrgico e cumpriu todas as etapas pós-cirúrgicas. Ele e Juliana usaram métodos contraceptivos (preservativo e DIU (Dispositivo Intrauterino) até que os exames de espermograma confirmassem que Carlos não mais produzia espermatozóides.

Ocorre que, 3 (três) anos após a realização da vasectomia, Juliana percebeu sintomas de gravidez, e a confirmou logo em seguida, por meio de exames específicos. A gravidez causou enorme descontrole emocional à família. A Carlos, que pensou até em infidelidade da esposa; a Juliana, que suportou um crítico estado de saúde em decorrência das já faladas varizes, durante toda a gravidez, que correu em quadro de alto risco; aos dois, porque não haviam planejado ter um terceiro filho e sabiam das consequências daquela gravidez.

Carlos fez novos exames de espermograma, através dos quais foram identificados espermatozóides imóveis, em quantidade mínima por lâmina, não suficientes para que houvesse fecundação. Depois do nascimento da criança, Carlos submeteu-se ao exame de DNA e confirmou a sua paternidade.

Carlos e Juliana suportaram uma traumática gravidez e as consequências decorrentes desse novo membro da família (psicológicas, fisiológicas e econômicas.

2. A avaliação jurídica dos fatos à luz da teoria da responsabilidade civil. Descumprimento do dever de informar.

Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo (art. 927, do CC), entendendo-se o ilícito a ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência (art. 186, do CC), é certo que há, nos autos, uma omissão do profissional no trato com os pacientes que revela o nexo de causalidade entre ela (como ato ilícito) e o dano.

A Lei 9.263/96, que trata do planejamento familiar, dispõe, no art. 10, §1º, que “É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes” (grifo nosso).

De tal forma, é dever do profissional de saúde (no caso concreto, na condição de preposto da pessoa jurídica de direito público procurada por Carlos para a realização da cirurgia – o que invoca a aplicação do art. 37, §6º, da Constituição Federal), transmitir ao paciente as condições e as consequências para a realização da esterilização, nos termos da Lei do Planejamento Familiar.

Se esse dever de informar não é cumprido, está configurada a omissão voluntária de que trata o art. 186, do Código Civil, exatamente porque o profissional de saúde não pode dar ao paciente apenas um documento através do qual ele se declara ciente das consequências da cirurgia, inclusive a de que o procedimento o deixará definitivamente estéril, impossibilitado de gerar filhos, mas também tem o dever de ressalvar a impossibilidade de se alcançar o referido resultado ou de haver recomposição natural da cirurgia, além de outros riscos e consequências, como determina o art. 10, §1º, da lei 9.263/96.

Portanto, não havendo qualquer explicação ou ressalva, de forma escrita ou verbal, de que a cirurgia de vasectomia pode sofrer alguma reversão, mas o contrário, ou seja, uma anotação no documento de ciência, de uma forma transparente e induvidosa, de que o paciente ficará “definitivamente esterilizado, isto é, incapacitado para gerar filhos”, há, então, descumprimento do dever de informar.

Uma pessoa de qualquer nível de esclarecimento não teria dúvida, ao ler o conteúdo de um documento com essa anotação, não terá dúvida de que, ao se submeter à vasectomia, nunca mais poderá ter filhos. Quanto a esse dever de informar que se espera do profissional da saúde, cumpre consignar a lição do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino(2):

A principal novidade na responsabilidade dos profissionais liberais, assumam eles obrigações de meio ou de resultado, é o incremento do dever de informação. Conforme já analisado em paralelo com o defeito de informação, frequentemente, o profissional liberal poderá ser responsabilizado, embora tenha atuado com a diligência esperada, por não ter informado de modo correto e adequado o seu cliente sobre os riscos que estava correndo com determinado procedimento.

Com efeito, era obrigação do profissional de saúde informar adequadamente o paciente acerca da possibilidade de ineficiência do procedimento contraceptivo, ao invés de garantir a esterilidade definitiva. À Luz da Lei do Planejamento Familiar, o profissional de saúde foi omisso e negligente sobre os efeitos que a desinformação poderia provocar (mormente quando seu paciente é pessoa extremamente simples, de pouca instrução). Desse modo, a negligência e descuido com o dever de informação obriga-o ao dever indenizatório.

Na Apelação Cível Nº 70058752759, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul(3), foi reconhecida a responsabilidade civil do médico, em virtude do descumprimento do dever de informar. O caso em referência recebeu a seguinte ementa:

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. FALHA NO DEVER DE INFORMAÇÃO. VASECTOMIA. GRAVIDEZ. DANOS MORAIS OCORRENTES. AGRAVO RETIDO. Da inversão do ônus da prova 1. No caso em exame, comprovada a relação de consumo no negócio jurídico entabulado entre as partes, viável a inversão. Inteligência do art. 6º do CDC. Mérito do recurso em exame 2.No caso em tela merece acolhida em parte a pretensão da parte autora, uma vez que restou comprovada a falha no dever de informação levando o autor a acreditar que estava estéril e, consequentemente, duvidar da fidelidade de sua mulher, que engravidou após o procedimento. 3.Não se vislumbra erro médico no caso em tela, prova que cabia à parte autora e do qual não se desincumbiu, a teor do que estabelece o art. 333, I, do Código de Processo Civil. Saliente-se que a cirurgia realizada apresenta possibilidade de insucesso que não pode ser atribuída ao médico, denominada na literatura médica como recanalização (rejunção espontânea dos canais deferentes após a vasectomia). 4. A lesão moral ocasionada decorre da falha no dever de informação, dando a falsa segurança de que o método anticoncepcional utilizado era infalível, e não em função de prejuízo à saúde, estético ou corporal que ocasionasse invalidez ou impossibilidade de realizar uma vida plena sócio-econômica. Da indenização por danos morais 5.A demandada deve ressarcir os danos morais ocasionados, na forma do artigo 14, caput e § 4º, do Código de Defesa do Consumidor, cuja incidência decorre da falha no dever de informação, a qual se configurou no caso, cuja lesão imaterial consiste na dor e sofrimento dos postulantes, que experimentaram uma grave crise conjugal. 6. No que tange à prova do dano moral, por se tratar de lesão imaterial, desnecessária a demonstração do prejuízo, na medida em que possui natureza compensatória, minimizando de forma indireta as consequências da conduta do demandado, decorrendo aquele do próprio fato. Conduta ilícita do demandado que faz presumir os prejuízos alegados pela parte autora, é o denominado dano moral puro. 7. O valor da indenização a título de dano moral deve levar em conta questões fáticas, como as condições econômicas do ofendido e do ofensor, a extensão do prejuízo, além quantificação da culpa daquele, a fim de que não importe em ganho desmesurado. Negado provimento ao agravo retido e ao apelo. (grifos nossos)

Desse modo, a lesão sujeita à responsabilização civil do profissional da saúde decorre da falha no dever de informação, especialmente quando dá a falsa segurança de que o método anticoncepcional utilizado era infalível.

3. Conclusão.

O prestador de serviços de saúde tem o dever de dar informações ao paciente acerca dos procedimentos e dos efeitos relativos ao método contraceptivo buscado (no caso analisado, a vasectomia).

Desse modo, a melhor interpretação que se pode dar à matéria é a de que há responsabilidade civil do prestador de serviço de saúde quando a vasectomia (ou qualquer outro método contraceptivo sujeito às disposições da Lei 9.263/96) não atingiu a esterilização pretendida e, antes dela, houve falha no dever de informação em relação aos seus procedimentos, efeitos e consequências.

Portanto, a omissão voluntária do prestador de serviços de saúde que deixa consignado, no atendimento ao paciente, apenas o caráter de definitividade da medida, sem se prestar ao cuidado de informar os riscos e as consequências da cirurgia, tal como previsto no art. 10, §1º, da Lei 9.263/96, está sujeito a, diante da ineficiência do método, responder pelo ato ilícito, que guarda nexo de causalidade com os danos sofridos pelo paciente (arts. 927 e 186, do Código Civil).

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Notas:   [ + ]

1. Os nomes utilizados neste artigo são fictícios.
2. SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor, edição 2002, Ed. Saraiva, pp. 187/188.
3. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70058752759, Quinta Câmara Cível, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 30/04/2014.